1 de janeiro de 2007

“Lugares simbólicos: Ilha do Pavão”

BATELLA, Juva; BERND, Z., “Lugares simbólicos: Ilha do Pavão”, in: Dicionário de figuras e mitos literários dasAméricas, 1. ed., Porto Alegre, ed. Tomo Editorial, editora da UFRGS, 2007, v. 1, p. 325-329 (ISBN: 9788586225512).

1. Apresentação

O pavão, tal como o conhecemos, ou seja, ornado de sua longa cauda, toda ela pontilhada de círculos coloridos semelhantes a olhos a espalharem-se por uma gigantesca plumagem, vem da família dos faisões, é pássaro macho, da espécie P. Cristatus, e não pouco exibido: abre-se e fecha-se como um leque, caminha com uma altivez um tanto desajeitada e pia desagradavelmente. A descrição — não menos exuberante — que lhe faz o dicionário Aurélio é a de uma “grande ave galinácea, fasianídea, cujo macho apresenta crista, plumagem brilhante azul ou verde, e grandes plumas caudais com manchas oculares iridescentes...” (Ferreira, 1999).

O verbete em pauta não é propriamente Pavão, mas uma ilha que leva o seu nome e — veremos — com ele se relaciona. A descrição que faz o escritor João Ubaldo Ribeiro de sua própria ilha imaginária, cenário de seu romance O feitiço da ilha do Pavão, é tão sedutora que a ela não resistiram Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Lá está a ilha, em seu Dicionário dos Lugares Imaginários (Manguel & Guadalupe, 2003, p. 333-335); lá está a descrição de João Ubaldo Ribeiro, como o único texto a ilustrar todo o verbete. A “verdadeira” ilha do Pavão, na área da cidade de Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul — uma das 28 ilhas de um grande arquipélago situado na confluência das águas do Guaíba com os rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí —, está um bocado longe e em nada se assemelha à ilha de João Ubaldo Ribeiro, “uma barreira de granito, amalgamada com os contrafortes do Recôncavo e os costados de Itaparica” (Ribeiro, 1997, p. 12).

"... uma ilha que inventei no meio da Baía de Todos os Santos, que se existisse talvez ocupasse uma área superior à própria baía. É uma ilha misteriosa, de difícil acesso e sobre a qual ninguém fala (...). Fiz uma espécie de fantasia. Descrevo uma sociedade no Brasil do século XVIII. Um Brasil completamente isolado do resto da colônia, embora partilhe da herança ibérica que todos nós recebemos. É a história de uma ilha que se desenvolve autonomamente. Não sei em que vai dar (Entrevista à Revista IstoÉ, 19 mar. 1997)."

Isso disse o autor ainda às voltas com a escrita. Ademais, ninguém, antes de João Ubaldo Ribeiro, falou nessa ilha do Pavão — “Jamais se escutou alguém dizer ter ouvido falar na ilha do Pavão, muito menos dizer que a viu, pois quem a viu não fala nela e quem ouve falar nela não a menciona a ninguém” (Ribeiro, 1997, p. 9). A ilha, no entanto, existe, “com sua história, sua gente, sua terra amanhada e seus matos brabos, seus bichos e seu próprio tempo, que é diverso dos outros tempos, embora ninguém saiba explicar de que maneira ou por que razão” (Ribeiro, 1997, p. 12).

2. Histórico

A ilha do Pavão — falemos dela — abriga, no século dezoito, uma sociedade de classes, sim, mas embaralhadas e comunicantes; uma sociedade em que “elementos saídos da cultura popular, massiva e culta se entrelaçam e interagem”, escreve Zilá Bernd, “sem que o autor intervenha para hierarquizá-los” (1999). Às representações ordinárias dos diversos elementos formadores do que se convencionou chamar “o povo brasileiro”, João Ubaldo contrapõe outras: são as representações rebeldes, para ficarmos em apenas três, do índio que não quer ser índio e não quer viver no mato, do negro que não tolera negros de outras origens e, sentindo-se superior, se organiza para escravizá-los, do branco colonizador e rico que não quer mandar em ninguém, não é arrogante e não se vê como superior nem credor de nada — é o caso, respectivamente, de Balduíno Galo Mau, índio mentiroso, conhecedor de todas as matreirices e avesso à idéia sedimentada de um ser inocente, ingênuo e organicamente ligado à natureza; caso de Afonso Jorge II, negro nobre do reino do Congo, filho do majestoso Afonso Jorge I, conhecidos traficantes de negros de raças “muito justamente apelidadas de infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e fedorentas” (Ribeiro, 1997, p. 92), chefes sucessivos do grande Quilombo do Mani (Rei) Banto, quilombo não de negros fugidos, mas de negros cativos; caso de Capitão Cavalo, senhor de muitas terras, branco, bastante poderoso e no entanto avesso ao poder e aos seus exigentes caprichos, acolhedor de escravos fugidos, estimulador de casamentos multi-étnicos, defensor do trabalho justo e da justa divisão do produto do trabalho, socialista dos bons, revolucionário como poucos, odiado por alguns e muito cioso de seu sossego e de sua boa consciência. A sociedade que vamos encontrar na ilha do Pavão é, como vimos e para dizer o mínimo, diferente, porosa e multi-étnica.

"Possivelmente [o viajante apressado] também estranhará ver negros calçando botas, sentando-se à mesa com brancos, tuteando-os com naturalidade e agindo em muitos casos como homens do melhor estofo e posição financial, além de negras trajadas como damas e de braços dados com moços alvos como príncipes do norte (Ribeiro, 1997, p. 17)."

O lugar imaginário ocupado pela ilha do Pavão pode ter recorrências em várias literaturas, uma vez que se trata de um espaço utópico a seguir um tempo diferente, prenhe de possibilidades históricas e existenciais, uma vez que se trata, antes de tudo, de uma ilha, pedaço de terra cercado de água e já nascido como um tropo. Contudo, a ilha do Pavão, ela mesma, configura uma criação exclusiva de João Ubaldo Ribeiro, sendo único seu local de nascença: o livro que lhe dá título.

3. Campos de aplicação

3.1. A ilha (fora do) Brasil

Não se manteria como singular — embora sendo diferente, poroso e multi-étnico — um povo que não estivesse de algum modo apartado. O espaço insular presta-se muito mais a um exercício de recriação que se pretenda mítico do que a grandiosidade dos espaços já formados. Nada melhor, para se inventar um Brasil, do que um outro lugar, “fora” do Brasil, onde se irá plantar um projeto de Brasil. A ilha do Pavão situa-se nalgum ponto do Recôncavo Baiano, dentro do território brasileiro mas inacessível à maioria dos brasileiros, que dela terão pavor. Ela será sempre, neste sentido, o “outro Brasil” — ilha dentro da qual se vive bem, mas “da qual não se conhece navegante que não haja fugido”, diz o narrador, “dela passando a abrigar a mais acovardada das memórias” (Ribeiro, 1997, p. 9). E diz agora o escritor: “Fiz uma brincadeira e resolvi imaginar (...) alternativas para aquele Brasil, como se um outro país se desenvolvesse paralelamente ao que conhecemos” (entrevista ao jornal O Globo, 3 ago. 1997).

Não bastará, no entanto, ser a vida na ilha do Pavão boa para todos aqueles de todas as cores; não bastará funcionar a ilha como uma espécie de paraíso contraposto ao continente desigual e totalitário. O espaço insular de João Ubaldo Ribeiro é produtivo, como escreve Elisalva Oliveira-Joué (1999), na medida em que “remete constantemente para o começo de tudo, do país e do povo, forjados pelo encontro, na maior parte das vezes forçado, das três etnias”. Se permanecesse ancorada à condição de paraíso paralelo, a reunir as condições ideais de um Brasil que poderia ter sido, mas acabou não sendo, não estaríamos a falar da ilha do Pavão como lugar mítico, mas como lugar utópico, e uma das tarefas dos lugares míticos é esta: devem funcionar como simulações de inícios. A ilha do Pavão torna-se então, sob essa idéia, o lugar da gênese, por excelência, de uma alternativa de sociedade brasileira.

"O mito deve ser ainda distinguido da utopia (projeção de um futuro ideal), da lenda (que tem fundamento ou caráter de certo modo histórico), do conto (uma forma dessacralizada) etc. Mas o vocabulário é hesitante, mesmo quando se trata de especialistas, como sucede por exemplo com K. Mannheim, que designa sob o nome de utopia aquilo que entendemos aqui como mito. Além do mais, pode acontecer mais de uma vez que tal forma narrativa se situe a meio caminho do mito com relação à lenda, ou do mito com relação ao conto e à utopia (Dabezies, 1998, p. 732)."

A ilha do Pavão brilha na mente dos que não a conhecem e que nela nunca pisaram como um lugar, tal como um mito, de existências não vivenciadas — “paisagens adivinhadas, sonhos aos quais dar vida, sensações apenas entrevistas, lembranças vívidas do que não se passou” (Ribeiro, 1997, p. 12). A ilha do Pavão, no tempo narrativo do romance, é capaz de engendrar, para os seus personagens, muitos prováveis futuros. A história de seus habitantes, no entanto, está confinada à ilha, e, mesmo que o leitor possa, e deva, aumentar para níveis continentais o diâmetro de sua leitura, os acontecimentos narrados não se esparramam para o resto do Brasil. João Ubaldo Ribeiro não está a brincar com a história do país, imaginando o que poderia ter acontecido conosco se... os portugueses tivessem abandonado a tarefa colonizadora e os padres católicos desistido da missão catequética, os holandeses afinal se firmado na terra, os negros escravos conseguido organizar-se e lutar... Não. A sociedade que vamos conhecer lendo o romance de João Ubaldo Ribeiro é a sociedade brasileira na medida em que todos os nossos antepassados étnicos lá estão, sim, mas nem sempre mantendo preservadas as suas características como classe. A sua configuração e os seus níveis de relacionamento desenvolveram-se de modo diverso e afastaram-se totalmente da experiência “continental”. A ilha permanece isolada, e é esse isolamento que lhe confere características míticas.
           
"A metáfora do ilhamento é um dos recursos estilísticos utilizados pelo autor para impedir que os seus relatos deslizem para uma literatura panfletária, pois, ao situar a narrativa entre dois espaços, o insular de Itaparica ou da imaginária ilha do Pavão e o resto do Brasil (...), o autor planta as raízes, afirma a legitimidade dos componentes negro e índio do povo brasileiro e deixa o caminho aberto para que brotem do texto a negação do Único — a cultura européia e o tipo branco — e a valorização do Múltiplo e do Outro — o branco, o negro, o índio e o mestiço (Oliveira-Joué, 1999)."

3.2. O tempo atocaiado

Mas não só. A ilha do Pavão pode não ser ainda um mito. Como já se disse, João Ubaldo Ribeiro, ou seu narrador, é o primeiro a nomeá-la. Trata-se de uma criação exclusivamente ubaldiana e presente apenas em seu romance de 1997. Do mesmo que podemos dizer, citando André Dabezies, que um mito “tampouco é identificável com um texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita imagens míticas” (Dabezies, 1998, p. 732), podemos ir além e afirmar também que a ilha do Pavão, em si, não constitui um mito, mas um lugar de mitos.

João Ubaldo Ribeiro revela ao leitor que a ilha do Pavão possui escondida em seu centro uma gigantesca esfera mágica a funcionar como uma espécie de toca do tempo. Inicia-se então, dentro da história, um desfile de experimentações: os personagens protagonistas, ao entrar e sair da esfera, conseguem paralisar o andamento dos eventos e produzir, durante a paralisação, futuros latentes. Os prováveis futuros que aquela sociedade do século XVIII vivenciou correspondem, para o leitor de hoje, aos passados que tivemos ou que poderíamos ter tido. A brincadeira remete a nossa imaginação às inúmeras possibilidades de sociedade brasileira.

"E foi assim que começaram a usar de fato a toca do tempo, sobre a qual aprendiam cada vez mais, embora não entendessem nada de seus mecanismos misteriosos. Agora tinham certeza de que, enquanto o presente parava, ilimitados e indefinidos futuros ficavam em perpétua gestação e o tempo os recebia ao acaso, não tinha preferências. Ou podia ser levado a tê-las, pelo menos por exclusão, embora não por inclusão. Escolher um dos futuros disponíveis, sim; plasmar esse futuro, não, não parecia ser possível. Como não? Cada mudança mudava tudo mais, mas como saber? (Ribeiro, 1997, p. 313)."

4. Síntese crítica

4.1. O que faz um mito?

O mito situa-se fora do tempo. A ilha do Pavão abandona o seu espaço em meio às águas do Recôncavo, e é como se deixasse de existir. O mito suspende o tempo. Mal um personagem adentra a esfera mágica, a ilha do Pavão transforma-se, e um gigantesco Pavão abre a sua cauda e se ilumina, produzindo à sua volta luz e ofuscamento. Em seguida o breu e a suspensão efetiva do tempo — uma suspensão grávida. O mito recria passados e inventa futuros.

"Portanto, o tempo parava, quando o pavão acendia. E o pavão acendia quando algum deles entrava na bola. (...) E o povo via o pavão fulgurar, mas depois não se lembrava, só se lembrava de que, repentinamente, a lua sumira, tudo escurecera, a ilha parecera ser a única terra no meio do mar, para depois voltar tudo a como estava antes (Ribeiro, 1997, p. 299-300)."

Mas o mito tem também uma verdade, que não é apenas poética ou simbólica, como o era para os antigos, mas uma verdade híbrida — “... nos dias de hoje, o mito deve travar um diálogo”, diz-nos André Dabezies, “e ter uma relação de simbiose com a racionalidade metafísica ou cotidiana” (1998, p. 734). A ilha do Pavão é a morada do tempo; um lugar literário que possui uma esfera mágica literária que, no entanto, foi inspirada pelo que João Ubaldo Ribeiro chamou de a “toca do tempo”, tradução livre de “wormhole” (buraco de verme), um conceito da ciência, fruto de um raciocínio operado com teorias da ciência, sim, mas que se reporta, pela via da literatura, à aventura mítica do viajante do tempo (ver bibliog. eletrônica1). O mito provoca a ciência, que inspira a literatura, que se volta para o mito, mas alimentada, desta vez — num diálogo específico e mais ou menos verossímil —, pela ciência.

"Vem de uma especulação já conhecida de cosmólogos sobre a possibilidade de uma viagem no tempo. Isso tem alguns fundamentos científicos. Como eu não escrevo ficção científica nem sou cientista, não me senti obrigado a me restringir às limitações e normas que existem para que isso aconteça. (...) ... essa esfera é chamada por um cientista americano de “wormhole” (...). É uma complicação. Seria uma dobra na curvatura espaço-tempo, que permitiria a você atravessar o tempo. Como eu quis dar uma verossimilhança ao fato de a ilha aparecer e desaparecer, recorri a isso (Entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997)."

 4.2. O pavão ruante

A provável razão para se chamar a ilha “do Pavão” pode dever-se à própria imagem do pavão em efetivo pavoneamento, ou seja, erguido e com a sua cauda cheia de olhos aberta em leque — infindáveis olhos vigilantes diante do leque aberto e prenhe de acontecimentos e possibilidades de história. Remonta ao universo arcaico grego a associação que se faz entre a cauda do Pavão e a idéia da onisciência, e especificamente às peripécias da deusa Hera, a orgulhosa, briguenta e vingativa mulher de Zeus. Diz o mito que Hera, ou Juno, enciumada do licencioso marido, encarcera a bela Io, deixando-a sob a guarda infalível de Argo, o ser dos cem olhos, o que tudo vê. Zeus, no entanto, que não nasceu ontem mas muito antes, encarregou o espertíssimo Hermes da tarefa de libertar Io daquela vigilância aparentemente imbatível. Bateram-se, e morre Argo com uma pedrada.

Hera, consternada, rende-lhe a homenagem final, retirando-lhe um a um os cem olhos e recolocando-os espalhados ao longo da cauda aberta de um pavão — que se torna a partir daí a ave consagrada a Hera e às suas saudades de Argo. Dizer ilha do Pavão é dizer ilha da ave dos cem olhos, a ave da onisciência e da clarividência, através da qual se vê tudo, até mesmo, e principalmente, o futuro, ou seja, o passado.

O pavão fêmea não tem plumagem e, portanto, não tem graça.

5. Autor: Juva Batella

6. Ver também: Democracia racial; Escravo; Índio degradado; Paraíso; Senhor de escravos.

7. Bibliografia

7.1. Bibliografia crítica

Bernd, Zilá. “Identidades compósitas: escrituras híbridas”. Matraga, no 12, 2o semestre, 1999, Apresentado no Congresso da Anpoll, 12 jun. 1998.2

Dabezies, André. “Mitos primitivos a mitos literários”, in Brunel, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários, 2a ed. Trad. Carlos Sussekind, Jorge Laclette, Maria Thereza Rezende Costa e Vera Whately. Prefácio de Nicolau Sevcenko. Rio de Janeiro: José Olympio, Editora UnB, 1998.

Manguel, Alberto & Guadalupi, Gianni. Dicionário dos lugares imaginários. Trad. Pedro Maia Soares, Ilustr. Graham Greenfield e Erik Beddows. Mapas e plantas James Cook. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.Oliveira-Joué, Elisalva. “Identidade mestiça e ilhamento na obra de João Ubaldo Ribeiro”, 1999.3

7.2. Bibliografia literária

Ribeiro, João Ubaldo. O feitiço da ilha do Pavão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

7.3. Bibliografia de imprensa

Ribeiro, João Ubaldo. Entrevista à Revista IstoÉ, 19 mar. 1997.

__________. Entrevista a Daniela Name, O Globo, 3 ago. 1997.

__________. Entrevista a Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997.

7.4. Bibliografia eletrônica

* , acesso em março de 2005.

**, acesso em agosto de 2004.


***, acesso em agosto de 2004.

Nenhum comentário:

Postar um comentário