11 de outubro de 1996

"O fluxo caótico da memória"

"O fluxo caótico da memória — Romance crepuscular com parágrafo de 360 páginas reanima o passado com os vestígios do tempo presente", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1996.

Resenha sobre o livro Passado contínuo, de Yaakov Shabtai, ed. Imago.

Passado contínuo, de Yaakov Shabtai, não conta uma história, mas dezenas. Lembranças, diálogos, descrições, devaneios, monólogos e narrativas de sonhos são fragmentos a gravitar velozmente à volta do dia-a-dia de três amigos — César, Israel e Goldman —, rasgando em mil pedaços o ambiente doméstico que os envolve e escrevendo, em cada pedaço, uma história de vida.

Logo ao início, somos informados de que o pai de Goldman morre de doença e velhice e Goldman, passados os exatos nove meses que constituem o tempo do romance, decide, em primeiro de janeiro, matar-se. A partir daí, o texto constrói uma galáxia de histórias à ligeira. Quando retrocede, a narrativa é um sistema vibrante e complexo de ancestralidades e aconteceres — famílias, amigos, amantes, brigas, casamentos, crimes, jantares, almoços de sábado e enterros, muitos enterros. Em tempo presente, fora o suicídio de Goldman, o enredo é uma teia onde não acontece nada. As frases engatinham, frouxas e descontínuas, e os personagens hesitam e atolam-se — imobilizados numa espécie de caos existencial, onde o problema, o velho e irreparável problema, continua sendo a morte sem Deus.

Passado contínuo, ou o original Zichron dvarim — segundo a tradutora, Nancy Rozenchan, expressão para Memorando, a lembrança das coisas —, é um vertiginoso fluxo de memória. O texto só existe na medida em que lembra. Tecnicamente falando, o foco narrativo está na terceira pessoa, mas ela é muito mais que uma pessoa — tem ares de divindade e bem poderia ser a bela Mnemósina, mãe das nove Musas e deusa da Memória. Sua função é reanimar o passado e alimentá-lo com vestígios do tempo presente.

Da primeira à última linha deste romance de muitas frases, poucos períodos e um só parágrafo — um bloco maciço de 360 páginas —, Shabtai esgarça o cotidiano de várias famílias israelenses. Pertencem as famílias a uma camada social de elite intimamente ligada ao movimento sionista. Nos anos seguintes à formação do Estado, em 48, esta classe, antes compacta e poderosa, assiste sentada ao próprio esfacelamento político, religioso e moral.

O resultado da decadência chega ao núcleo familiar, senta-se à mesa de sábado e come, em silêncio total, conversas, afetos e saudades. César, Israel e Goldman, microcosmos da geração mais nova, são corpos estranhos em crise. Não se reconhecem como filhos, maridos, pais ou cidadãos. O mais que conseguem são esbarros; o mais que fazem não vale nada. César é devasso, insatisfeito e egoísta. Não tem o que dizer às suas várias mulheres, não sabe de onde mais tirar o prazer que não encontra em nenhuma delas e só se relaciona na medida em que pode saciar-se sem ônus. Israel, por sua vez, é como se não existisse. Mora de favor no estúdio de César, não tem opinião, não consegue dormir com a jovem Ella, é alheio, impotente e insípido. Goldman, entre o seu próprio enterro e, nove meses antes, o do pai, fez ginástica e apenas iniciou a tradução do Somnium, de Kepler. Quis morrer antes de continuar.

Yaakov Shabtai também teve a vida curta. Nasceu em 1934, foi criado em Tel Aviv e, durante o serviço militar, estabeleceu-se num kibbutz, onde começou a escrever. Passados dez anos, volta para Tel Aviv e dedica-se à literatura. É autor de novelas, peças e histórias para crianças. Sofre, aos 47, um ataque do coração e morre — sem saber latim e sem ter podido ler o Somnium no original.

Somnium significa sonho. A fábula, até hoje pouco conhecida, conta a história de um menino, Duracotus, que sonha alto. No sonho, realiza, com sua mãe, uma viagem à lua. Lá chegando, encontram seres errantes, abrasados sob o sol do longo dia lunar, à cata constante de um pouco de água e vivendo um tempo estranho, onde a existência é curta e o crescimento, rápido.

São muitas as aproximações possíveis entre a “ficção científica” seiscentista de Kepler e o romance de Shabtai. O crítico James S. Diamond, em artigo sobre o tema, identifica algumas. Uma delas, formal, diz respeito à superposição de planos narrativos. O Somnium começa com um sonho, que atravessa todo o texto. De repente, quando já nos desligamos do contexto inicial, a história volta ao início, para o exato momento em que Duracotus acorda, sobressaltado, de sua viagem à lua. Passado contínuo, quando relembra, carrega-nos para longe; quando retorna, abrupto, mostra-nos que não saímos do lugar. A outra função do Somnium está em oferecer, através do bizarro mundo lunar, a possibilidade de um espelho deformado. Goldman traduz o Somnium e conhece a vida na lua. Duracotus sonha e assiste à vida na Terra.

Ao fim e ao cabo — sonhando ou relembrando —, Kepler e Shabtai tentam dizer a mesma coisa: o tempo voa, a realidade é um fluxo nada razoável de aconteceres e a existência só não é totalmente absurda porque, a depender do lugar e do momento em que se esteja, há quase sempre Deus ou — na eventualidade de uma ausência — a Memória.

Somnium, Johannes Kepler (1571-1630)

O astrônomo e astrólogo Johannes Kepler (1571-1630) começou a escrever este livro entre 1609 e 1610. A publicação definitiva, tal como se conhece hoje, só aconteceu, póstuma, em 1634. Segundo James Diamond, o Somnium começa com uma “história narrada por um narrador em primeira pessoa que conta como pegou no sono”. Durante o sonho, teve a sensação de que estava lendo um livro. “O estranho livro falava das aventuras de viagem de um menino chamado Duracotus”. Desse ponto em diante, Duracotus toma a cena e conta “detalhes da sua última excursão: uma viagem imaginária à lua, ao lado de sua mãe”. A narrativa segue descrevendo a superfície lunar e seus habitantes. Lendo os trechos traduzidos por Goldman, protagonista do Passado contínuo, saberemos que os habitantes da lua “não têm moradia fixa: vagam em bandos durante um dia de horizonte a horizonte (...). O crescimento [dos seres lunares] é rápido e a vida é curta porque cada corpo cresce em dimensões gigantescas”.

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