30 de julho de 2008

“Uma almazinha brasileira”

“Uma almazinha brasileira”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Portugal, 30 de Julho a 12 de Agosto de 2008, p. 4-6.

O Prêmio Camões foi criado em 1988 pelos governos do Brasil e de Portugal, e o seu oferecimento a um escritor significa o reconhecimento de que, em cada linha que escreveu e publicou, esse escritor contribuiu para que a Língua Portuguesa se tornasse maior, menos óbvia, mais surpreendente. Ganha o escritor, ganha a língua e ganha o leitor — e este é o que mais ganha, porque amplia os terrenos por onde levará a passeio a sua imaginação. O Prêmio, este ano atribuído ao brasileiro João Ubaldo Ribeiro, hoje com 67 anos, significa o reconhecimento do valor de uma obra inteira, o que vale dizer: de uma vida dedicada à literatura. No caso de um escritor conhecido antes de tudo como um romancista, serão os seus romances a razão deste reconhecimento. Ubaldo publicou, ao longo de 34 anos, nove romances. Quem quiser conhecer João Ubaldo Ribeiro terá de os atravessar, e dentro destes romances tentar encontrá-lo.

Uma recente conversa cordialmente divergente entre Mia Couto e José Saramago teve por tema aquilo que se costuma chamar a “marca” de um escritor, o seu “estilo”. Mia Couto, depois de 22 livros, declarou que gostaria de novamente desencontrar o seu próprio estilo e começar de novo, como se estivesse diante do seu primeiro livro. Saramago contestou-o dizendo que a estratégia talvez seja desnecessária e que a “marca”, o “estilo”, estará sempre lá, nas veredas do texto. Isso tudo pode soar a “conversa de escritor”, mas, de todo modo, no caso de Mia Couto e Saramago, a tarefa de identificar, nos seus respectivos romances, a “marca” que têm é quase uma brincadeira de criança. Qualquer leitor familiarizado, numa prova cega entre os dois, diria sem problemas: “Isto é um Saramago; isto é um Mia Couto”.

Diante de um escritor como João Ubaldo Ribeiro, em que não se detecta um estilo formal ou temático explícito a permear os seus romances, há então o quê, à exceção da assinatura, a agrupá-los? Sua obra romanesca é tematicamente sortida, o que tem dado ensejo a múltiplas abordagens, com variados resultados. Deve haver, no entanto, um fio comum, um nó, um centro nervoso, uma “marca” a enlaçar textos tão dessemelhantes.

Será a leitura de Viva o povo brasileiro, considerado o ponto alto da sua literatura, que vai iluminar as análises dos demais livros, anteriores e posteriores a 1984, e nos ajudar a identificar a “marca” do escritor baiano. E será um curioso personagem ubaldiano, batizado, neste romance, de a “almazinha brasileira”, que funcionará como a representação ficcional de um modo de narrar ampla e radicalmente utilizado pelo autor: o discurso indireto livre.

Está entre as mais brilhantes idéias da literatura brasileira a criação de uma almazinha que sobrevoe as inúmeras histórias que compõem um romance e não se identifique de modo restrito com nenhum personagem; antes, de maneiras diversas, consiga ser cada um deles e ao mesmo tempo não ser nenhum, sendo apenas ela mesma, de algum modo única e sozinha. A almazinha que surge às primeiras páginas de Viva o povo... atravessa quatro séculos e algumas gerações, sempre a encarnar em pobres-diabos, índios tupinambás, negrinhas escravas maltratadas ou ainda soldados brasileiros mortos na flor da idade, como foi o caso do pescador e alferes José Francisco Brandão Galvão.

O jovem, atingido pelas balas de algumas embarcações portuguesas, cai morto no cais da Ponta das Baleias, na Baía de Todos os Santos, com um olho furado e o crânio em pedaços. Mas José Francisco, graças às palavras de amor à pátria que teria supostamente proferido à hora da morte, tornou-se, da noite para o dia, um herói da independência, e seu discurso inaudito, peça fervorosamente homenageada, repetida e parodiada.

Neste dia de 1822, a almazinha que habitava o corpo do alferes um segundo antes do passamento afinal se despega, às carreiras, e sobe mais uma vez aos céus, aboletando-se no “Poleiro das Almas”, sítio onde se aboletam as almas enquanto esperam pelo momento de mais uma vez poderem descer e encarnar noutro ser. Permanecendo almas, as almas não aprendem nada; encarnando, aprendem as razões da vida. As almas precisam ser, e cada encarnação de uma alma é um modo de ser. E é essa almazinha brasileira que acaba por ser, ao fim e ao cabo, o mais constante protagonista do caudaloso romance de João Ubaldo. Ela entra e sai das histórias mais diversas, através de encarnações e desencarnações que partem do século XVII e chegam ao XX — quatro séculos de sofrimentos, tiranias e humilhações —, para compor a eloqüente amostra de alguns específicos modos de ser brasileiro.

Quais modos de ser? Do entrelaçamento de todas as histórias do livro e dos cruzamentos familiares verificados ao longo de tantas décadas destacam-se, do quadro ficcional, três personagens. José Francisco, que a posteridade reconhece como o heróico alferes Brandão Galvão, encarnará, com o famoso discurso às gaivotas, a idéia do patriotismo vazio que atravessa o imaginário brasileiro, do povo às elites. Um índio tupinambá, que chamam de Capiroba, habitante da ilha de Itaparica pelos idos de 1647, canibal de gosto exigente e apreciador da carne holandesa, transforma-se na possibilidade de se poder ouvir uma voz sempre silenciada nos relatos da história oficial: a do índio em processo de catequização. E transforma-se também — porque o centro da ação, aqui, é a catequese forçada, uma vez que o índio não se submeteu à conversão — no produto, levado às últimas conseqüências antropofágicas, do que lhe haviam ensinado os padres jesuítas com a celebração da Eucaristia.

A terceira encarnação da almazinha brasileira recairá sobre uma mulher. A jovem guerrilheira Maria da Fé — personagem possuidora da mais poderosa biografia do livro — parece constituir uma vontade do autor de que seja ela, das três, a mais apropriada encarnação da alma do povo brasileiro — almazinha inquieta e indecisa, é verdade, mas possuidora de um grande desejo de ser. Os três personagens carregam por toda a vida, habitando-lhes as entranhas, a almazinha brasileira que constitui o ser do romance; e carregam também, agora nos ombros, a responsabilidade de constituírem, cada um à sua maneira, uma tentativa de representação da assim chamada “identidade nacional”. Esta ideia foi brilhantemente desenvolvida pela professora brasileira Eneida Leal Cunha, em sua tese intitulada Estampas do Imaginário.[1]

Essa almazinha é então estes três personagens, e não é nenhum deles, sendo apenas ela mesma e igual apenas a si mesma. Essa almazinha é uma resposta à nossa busca pela “marca” do autor, na medida em que esse insólito personagem funciona como uma representação ficcional, portanto interna à obra, de uma outra coisa, esta, sim, constituinte e fundante do universo romanesco: o narrador. A natureza do narrador na obra de João Ubaldo Ribeiro é a mesma da almazinha voadora: errática e ambígua quanto à sua identidade.

João Ubaldo leva às últimas conseqüências, como poucos escritores o fazem, o discurso indireto livre, que se apresenta, na sua narrativa, com uma radicalidade joyceana. E quais são estas “últimas conseqüências”? São graves. O que se espera de um narrador? Que conheça a história que vai contar. Mas o narrador ubaldiano, que não consegue mover-se e falar senão como se move e fala o personagem que está incorporando, não conhece a história que deveria contar, salvo nos raríssimos momentos em que não está “incorporando” algum personagem.

Assim como a alma, que necessita encarnar para aprender, o trabalho do narrador vai desenrolar-se ao longo de um determinado percurso de vida — a sua vida de narrador ao longo dos romances de João Ubaldo. De Setembro não tem sentido, de 1968, a Diário do farol, publicado 34 anos mais tarde, vislumbra-se um caminho, linear no tempo, de progressiva e nítida abertura, que parte do personagem ensimesmado e avança em direção a uma nova condição — condição que inclui os relacionamentos desse personagem com os grupos sociais que direta ou indiretamente o envolvem, cada vez maiores e mais complexos.

Assim é que o seu primeiro romance, Setembro não tem sentido, se concentra na figura de Orlando, fechado em seu quarto e em si mesmo e demonstrando angústia e falta de perspectiva. Este romance tem a velocidade e a criatividade de um livro no qual claramente se inspira: O retrato do artista quando jovem, de James Joyce.

O facho da narrativa começa lentamente a abrir-se para o mundo no romance seguinte, Sargento Getúlio, de 1971. O narrador apresenta-se aqui em primeira pessoa, o próprio sargento, e por todo o livro o que faz é falar, não apenas de si, mas do que faz na vida: ser sargento, ser um empregado de seu chefe e ser portador de uma missão: levar um preso tido por comunista de um lugar para outro. Sargento Getúlio foi traduzido para o inglês pelo próprio Ubaldo e inspirou um estupendo e premiado filme homônimo, do diretor brasileiro Hermano Penna, com o ator Lima Duarte no papel principal. Observamos, neste segundo romance, um narrador não apenas preocupado com o lugar que ocupa dentro de si mesmo, mas também com aquilo que ele próprio espera de si em conformidade com a sua situação perante “o chefe”. Trata-se de Getúlio diante de sua missão e Getúlio diante de si mesmo. Não há à sua volta nenhum grupo social a que pertença; há apenas ele, Getúlio, o desgarrado. A narrativa e o leitor estão encarcerados na mente de Getúlio.

Oito anos mais tarde chega ao público o romance Vila Real (1979). O personagem Argemiro torna-se ao longo da história um líder natural para o seu povo, um homem pouco preocupado consigo mesmo e dolorosamente comprometido com os valores e os problemas da sua comunidade. Toda a narrativa se mantém encaixada na terceira pessoa, usando e abusando, no entanto, do discurso indireto livre, para dar conta do universo subjetivo de Argemiro, contraposto às agruras objetivas do povo de Argemiro, uma comunidade rural situada na região da Jurupema, ameaçada de todos os lados por outros povos inimigos. Não há aqui uma perspectiva nacional; não há perspectiva outra senão a da comunidade. Não se fala de Brasil; fala-se da região da Jurupema. O diâmetro do facho narrativo não ultrapassa as cercanias de Vila Real. O facho, no entanto, abriu-se um pouco mais. Já se pode ver que a área iluminada pelo narrador ultrapassa em muito os interesses particulares dos protagonistas, não mais fechados em seus quartos ou preocupados apenas em cumprir uma ordem e se manter em paz consigo próprios.

Com o romance Viva o povo brasileiro (1984), João Ubaldo, a começar pelo título, que não fala de um homem, Getúlio, nem de uma vila, a Real, mas de um povo, o brasileiro, dá mostras de avançar e ampliar sensivelmente o facho de interesses e o universo temático de seu narrador. O grupo social de que se fala agora é outro, ou são vários: o povo brasileiro como um todo e cada uma das suas partes: pretos e brancos, e dentro dos brancos os portugueses, holandeses, alemães e ingleses, e dentro dos pretos os de vários tipos e origens, e entre eles todos os pardos, mulatos, cafuzos e mamelucos.

Tudo isso está concentrado e representado pela gente de um mesmo lugar, que é o seu universo por excelência: o Recôncavo Baiano. Os rudimentos de uma idéia de pátria acabam por envolver todos os personagens e relativizar seus projetos particulares em nome de uma causa maior, de âmbito nacional. Foi a partir de Viva o povo... que se começou a falar, acerca da obra de Ubaldo, da necessidade cultural, espelhada na literatura, de se contornar com mais nitidez o que se convencionou chamar de “a questão da identidade nacional”.

O romance seguinte, O sorriso do lagarto, de 1989, cujo protagonista é um cientista, inaugura um nova direção no grupo de temas do escritor. Mesmo passando-se em Itaparica, o livro não tem como preocupação contar a história desta ilha baiana e de seu povo. O narrador ilumina seus personagens com um assunto de responsabilidade internacional e alça-os à condição não mais de representantes de um povo do Recôncavo Baiano ou do Brasil, mas de uma idéia de humanidade. Embora a narrativa mantenha muitas das características da prosa de João Ubaldo Ribeiro, o foco do livro é antes o seu tema que a sua forma ou sua ambientação, razão pela qual a história poderia passar-se, grosso modo, em qualquer lugar de razoável urbanidade. Os alvos dO sorriso do lagarto são a ciência, a engenharia genética, as conseqüências sociais do mau uso da tecnologia e a suposta presença de uma idéia universalista do mal nas condutas humanas.

No romance que se lhe segue, O feitiço da ilha do Pavão (1997), esse facho narrativo, que começou com o indivíduo e chegou à humanidade, realiza agora a sua abertura mais radical: através do tempo histórico, para afirmar uma dilatação não apenas do seu ambiente ficcional, mas do raio de ação de uma liberdade humana sem precedentes. O facho dilata-se para dentro do tempo, não como em Viva o povo..., que cobre quatro séculos da história brasileira, comendo-a pelas bordas, mas através da exploração radical de uma espécie de leque de possibilidades — à semelhança da cauda de um pavão. Para tanto, parte do seguinte ponto, banal e simples: a História está todo o tempo a ser alterada em seu futuro pelos atos cometidos no presente. O feitiço..., no entanto, não pára aí; utiliza-se da metáfora da viagem no tempo para dar conta da idéia de que a História também pode ser alterada retrospectivamente. Um outro modo de se dizer que o passado pode ser reinventado, sim, a depender do caminho interpretativo que se percorra.

Como se viu, o facho narrativo de Ubaldo foi se abrindo, de 1968 a 1997, e o seu narrador, a cada abertura, se foi tornando mais e mais comprometido com algo que o ultrapassa. Os romances Miséria e grandeza do amor de Benedita (2000) e A casa dos Budas ditosos (1999) não se encaixam na idéia do facho; enveredam por um desvio face à linearidade observada nos seis livros anteriores. São romances escritos em função de encomendas específicas: A casa dos Budas ditosos, para a série “Plenos Pecados”, da editora brasileira Objetiva; e Miséria e grandeza do amor de Benedita, inserida no projeto da editora Nova Fronteira de criação do primeiro e-book brasileiro.

Em 2002, com a publicação de Diário do farol, o autor regressa ao ponto de partida: o quarto fechado, onde o facho parece se estreitar novamente para os limites do indivíduo ensimesmado, mas na verdade se amplia. O protagonista do Diário..., dentro do seu quarto, talvez o quarto de uma instituição psiquiátrica, dispõe-se a forjar a sua biografia, com paciência e detalhes. O facho volta a dirigir-se ao indivíduo, mas se amplia para dentro do universo infinito das memórias de infância, do inconsciente e da loucura.

Esta gradual abertura para universos mais amplos e complexos obriga o narrador de Ubaldo a “encarnar” em mais vidas e comprometer-se com problemas cada vez menos particulares. Ao longo do facho, que é sempre outro e mais amplo, já não são um ou dois, mas uma grande comunidade de personagens a chamar para si esse narrador. Talvez seja esta a “marca” do autor na obra de João Ubaldo Ribeiro — este narrador sem cabeça, que está lá e não está, que nos prende a cada página e, tal como uma almazinha voadora, será sempre aquilo que nos escapa.

Juva Batella

Escritor, doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e autor da tese Este lado para dentro — ficção, confissão e disfarce em João Ubaldo Ribeiro, Rio de Janeiro, 2006.







[1] Cunha, Eneida Leal. Estampas do imaginário — literatura, cultura, história e identidade. Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio. Rio de Janeiro, Abr. 1993. Orient. Affonso Romano de Sant’Anna.

3 de julho de 2008

"Ensaio sobre a surdez... (título mudado por sugestão do meu amigo Mauro Gaspar)"

Minha mulher me disse:

- Você iria gostar de assistir ao encontro do Saramago com a viúva do Borges, a Maria Kodama...

- Onde?

- Na Biblioteca Nacional, em Lisboa.

- Quando?

- Nesta sexta-feira.

- Como?

- Como assim “como?”?!

- Digo, claro. Irei. Será?

Fui. Alguma coisa me dizia que eu não iria entender quase nada. O sr. José Saramago e a dona Maria Kodama iriam ficar conversando na nossa frente, é isso? Em castelhano? E o sr. Saramago? Está a se recuperar de uma pneumonia, acho. Sempre foi difícil entender a dicção do sr. Saramago. Em castelhano, então... Fui.

E me sentei na segunda fileira, porque a primeira estava toda ela reservada. Chegaram. O sr. Saramago, velhinho, amparado, magrinho, mas um arzinho bastante altivo, começou a dizer que iria ler um poema do Borges. Leu. Ninguém ouviu nada.

- Se calhar é o microfone... - disse alguém.

E subiu um senhor ao palco para posicionar o microfone de lado, porque de frente, muito perto, o aparelho produzia na voz do sr. Saramago uns arrotinhos.

- Pronto. Já está - disse o alguém.

E o sr. Saramago releu o poema. Ninguém percebeu nada. Até que sobe a dona Pilar, mulher do sr. Saramago, linda, simpática, enérgica, objetiva, despachada. Foi lá e ajeitou o microfone de frente para a boca do sr. Saramago. E ele:

- Ele estava então certo, mas aquele senhor mudou-o para o lado...

- Deixa-o aqui - disse a dona Pilar, definitiva.

E o sr. Saramago recomeçou do início o poema do Borges. Entendemos só mesmo o início, porque ele, aos pouquinhos, se foi afastando do microfone e olhando para baixo. Alguém disse: “O microfone está a se afastar”. Outro disse: “Não é o microfone; é o Saramago...”. Aplaudimos mesmo assim, com cara de quem havia percebido tudo, porque é sempre bom ouvir um poema, mesmo que seja só o início, e ainda mais do sr. Borges...

O sr. Saramago, em seguida, esperou que a dona Pilar voltasse a ajeitar o microfone, e depois falou para si mesmo uns dez minutos algumas coisas que deviam ser ótimas, porque ele de vez em quando compunha no rosto umas expressões curiosas, que tomavam assim o lugar daquela sua costumeira expressão carrancuda.

O sr. Saramago exercita, depois eu formalizei a coisa na minha cabeça, o chamado mau humor bem-humorado, que consiste em produzir, nos limites do cômico, um mau humor que se torna (daí os limites) quase uma caricatura de si mesmo. E, amparado e protegido por esse mau humor que provoca pequenas gargalhadas, ele pode então, sem o receio de ser chamado de mal-humorado (uma vez que está a produzir gargalhadas...), vociferar contra a televisão, contra a literatura de auto-ajuda, contra a literatura comercial, contra a barulhenta música dos jovens, contra o capitalismo, o socialismo de agora e contra todos os seus inimigos reais ou imaginários. Fechemos o parêntese e passemos a palavra à dona Maria Kodama.

Que falou também muito pouco à vontade diante daquele espezinhante objeto, o microfone, que teve de ser posicionado e reposicionado inúmeras vezes de modo a que fosse capaz de abarcar, reproduzir e amplificar o som da sua voz. Ninguém percebeu nada. Eu digo “ninguém” porque me dei ao trabalho de perscrutar os rostos franzidos à minha volta.

Ela é bonita, doce, meiga, cativante, mas me pareceu, mesmo eu não tendo entendido nada, que não perdi muita coisa. O sr. Saramago, em seguida, pegando no microfone como quem pega numa taça de vinho e a mete à sua frente, à mesa de um jantar, recomeçou a sua pequena “comentação” da obra do sr. Borges, afastando, é claro, a taça de vinho no momento em que começava cada frase. Ele disse algumas coisas que eu não percebi e em seguida comunicou a todos que iria fazer três perguntas à dona Maria Kodama. Fez as duas primeiras, e até hoje eu não sei quais foram, e nem nunca saberei, e em seguida fez a terceira, que, agora digo, foi a única coisa que me fez dizer a mim mesmo, bem mais tarde, à noite, à minha mulher, na cama: “Valeu a pena ter ido só por causa daquela pergunta”.

A pergunta foi (no castelhano saramágico):

- Então, diz-me lá, Maria, como é que o Borges te dizia que te queria? Com que palavras ele te dizia: “Quero-te”?

A resposta? Antes de a dar, a dona Maria Kodama sorriu, depois corou, depois de corar riu, depois corou novamente, riu mais um pouco e de uma maneira mais descontrolada, e ao fim respondeu.

Mas eu não entendi uma única palavra.