15 de fevereiro de 2008

"Todos os nomes - Parte I"

Os romances do sr. Saramago e as caretas dos portugueses; a metáfora da morte do autor e o crime perfeito; o sr. Saramago como o insistente ressuscitador; o sr. Saramago fantasiando-se de crítico literário; o sr. Saramago-ele-mesmo; o estilo do sr. Saramago; o que fazer com o sr. Saramago?

Descobri o sr. Saramago e a prosa típica do sr. Saramago somente muitos anos depois de vir à tona o Memorial do Convento, publicado em 1982. Ainda hoje, também muitos anos depois de o ter lido, lembro-me da história da pequena Blimunda, que não deve ficar em jejum porque em jejum consegue pressentir o interior das pessoas e descobrir quem são, realmente. O Memorial do Convento é uma musiquinha que a gente vai lendo, vai lendo, e de repente levamos um susto, porque descobrimos que penetramos no compasso final e só falta uma página para o desfecho, e aí ficamos tristes, tristes, com o final da musiquinha. Mas a tristeza dura pouco, o tempo de se pegar noutro livro do sr. Saramago e continuar com a festança literária.

E com o sr. Saramago fiz então aquele caminho clássico: li em seguida O ano da morte de Ricardo Reis, de 1984, não sei por que razão acabei não lendo A jangada de pedra, de 1986, talvez porque a idéia de uma Península Ibérica que se despregue da Europa e siga navegando por mares nunca dantes navegados tenha me parecido de uma absurdidade por demais gráfica, mas li A história do cerco de Lisboa, de 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, o Ensaio sobre a cegueira, de 1995, e acabei parando no Todos os Nomes, publicado em 1997, não me animando mais a ler o Saramago dA caverna (2001), dO Homem duplicado (2002), do Ensaio sobre a lucidez (2004) e dAs intermitências da morte (2005). Ainda tive paixão suficiente pelo sr. Saramago-ele-mesmo para ler o Saramago dentro do Saramago, ou seja, as suas ousadas investidas autobiográficas e diarísticas, e por isso encarei o grosso volume dos Cadernos de Lanzarote (cujo último tomo saiu em 1997) e ainda o delicioso exemplo de autoficção que é o Manual de Pintura e Caligrafia (de 1977).

Quando soube que o sr. Saramago havia ganho o Nobel, e seguramente graças à contundência do Ensaio sobre a cegueira, fiquei exultante, porque esse livro me impressionou como poucos livros me impressionaram na vida. Um português com quem jantei, muito culto, me disse, fazendo uma careta, que aquilo não passava dA peste, do Camus, reelaborada. Eu não li A peste, e até deveria ter lido essa Peste antes de escrever este textinho, mas prometo que vou ler e depois comento o comentário do amigo português. De todo modo, o sr. Saramago conseguiu fazer com que nós víssemos, ali dentro do seu Ensaio sobre a cegueira, o inferno apenas pressentido e tateado por uma humanidade toda ela cega — cega de dar dó. Como dizem os portugueses, aquilo foi um livro muito bem conseguido, ou seja, muito bem feito.

Os portugueses dizem assim, de modo geral, mas não estou muito certo de que acreditem muito nisso e que apliquem essa expressão às coisas que o sr. Saramago diz. E digo isso baseado numa estatisticazinha muito pessoal, muito circunscrita às minhas rodas de conversa literária. Desde que me mudei para Portugal, num ensolarado dia de setembro, que vejo os portugueses com quem converso torcerem a boca, numa careta medonha, quando se referem ao sr. Saramago. Sinto-os, e sempre os senti, um bocado fartos do sr. Saramago, das coisas que diz o sr. Saramago e das coisas que fez o sr. Saramago quando ocupou o cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, entre abril e novembro de 1975, época em que, segundo me disseram muitos portugueses com quem conversei, o sr. Saramago não se mostrou profissionalmente simpático com aqueles que não simpatizavam com as suas idéias políticas.

Até se poderia alegar, num rebate a essa minha sensação e também às caretas e histórias portuguesas, que uma coisa é o sr. Saramago, outra coisa são os livros que o sr. Saramago escreve. Isto é verdade em relação a muitos autores, já que é sempre prudente, do ponto de vista teórico e analítico, que se faça uma distinção entre a pessoa do autor e a sua “pessoa literária” — ou seja, o narrador que, nas frinchas de um romance, está ali, sempre, mas muitas vezes bastante escondido. No caso do sr. Saramago, essa distinção morre, e foi o próprio sr. Saramago o autor desse crime de assassinato.

Outro senhor, o sr. Roland Barthes, notável teórico e crítico francês, celebrizou-se, entre outras belas e produtivas idéias, com aquela bela e produtiva metáfora da “morte do autor”. Disse ele, em palavras poeticamente acadêmicas, que “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo de onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem a se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (“A morte do autor”, in O rumor da língua, tradução de Mario Laranjeira, São Paulo, ed. Brasiliense, 1988, p. 65). Em outras palavras, menos poéticas e menos acadêmicas, a personalidade do autor pode vir a se apagar diante de uma voz mais forte e bem mais autorizada, qual seja, a do narrador. O sr. Barthes ainda produz algumas gradações dentro da categoria do “autor”, mas elas não nos interessam aqui. O que interessa é a celebração da voz narrativa como uma importante voz a ser levada em conta para uma produtiva e feliz análise textual, patati-patatá.

Depois do crime perfeito do sr. Barthes, em que ele praticamente matou o autor com belas e brilhantes facadas teóricas, vai o sr. Saramago, por sua própria conta e risco, imbuir-se de uma espécie de missão ressuscitadora, reanimando o bom e velho autor e recolocando-o no centro do cenário narrativo, e em posição protagonista. Em seu artigo “O autor como narrador”, que começa com um encenado e bobamente irônico pedido de desculpas por estar ele, “um simples prático da literatura”, a aventurar-se nas estranhas terras da teoria literária; terras onde se falam línguas que apenas “vagas semelhanças guardam ainda com a linguagem comum”, o sr. Saramago aponta o dedo para a idéia da “morte do autor” e a chama de absurda e perigosa, e questiona a importância atribuída à figura do narrador, para ele uma escorregadia entidade, “propiciadora (...) de suculentas e gratificantes especulações teóricas”. E vê ainda com temor a conseqüência imediata dessa preferência: o descomprometimento compulsório do autor e seu pensamento, reduzidos a “um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra” (“O autor como narrador”, Revista Cult, São Paulo, ano II, nº 17, p. 25-29).

É bem verdade que o sr. Saramago não nega o que ele chama de “o instável equilíbrio do fingimento”, mas também não acredita em fingimentos puros, falsidades puras que, assim como as verdades ditas puras, não existem, senão bastante misturadas nos caldos da ficção. Sua maior preocupação não é tanto com a promoção do narrador à esfera da paternidade, mas com o espaço supostamente vazio deixado pelo desaparecimento do autor. O sr. Saramago, além de obcecado por si mesmo, é também a tal ponto obcecado pela necessidade de permanecer o autor em condição de proeminência em qualquer análise que se faça de uma obra literária, que chega ao ponto de se perguntar se o que move o leitor não será o desejo de encontrar dentro do livro, mais do que a história em si, “a pessoa invisível mas onipresente do seu autor”.

Para ele, não há espaços vazios. Quando se põe a refletir sobre a sua própria obra, coloca-se a si mesmo, sem a menor cerimônia, no centro narrativo de tudo o que escreve, o que vale dizer: não há uma única linha escrita, um único pensamento formulado por seus narradores, que não esteja de acordo com as idéias do próprio cidadão português José Saramago. Isto, se por um lado contribui, e muito, para a formação de uma identidade, uma homogeneidade e uma coerência ideológica a envolver os narradores do sr. Saramago, os livros do sr. Saramago e o próprio sr. Saramago, por outro lado diminuiu enormemente as suas, podemos assim dizer, alternativas de fingimento literário. Tenho a certeza de que ele não concordaria com isso.

Então, se o sr. Barthes minimizou e reduziu a uma espécie de desfunção o papel do autor no manejo com o texto literário, o sr. Saramago, em sua amadora e simplista incursão pela “terra estranha” da teoria literária, dimensionou a sua importância ao ponto de eleger a si próprio o centro nervoso de seus romances, desconsiderando radicalmente a mera hipótese de um narrador. E talvez esteja aí uma das razões pelas quais os portugueses torçam tanto a boca quando o assunto calha de ser o sr. Saramago. Eu bem sei que a minha estatisticazinha não é significativa, mas quatro em cada cinco portugueses a quem pergunto pelo premiado escritor dizem que já não agüentam mais o seu egocentrismo e as suas verdades. Quem narra a história, seja qual for o romance do sr. Saramago que se tenha à mão, não é o narrador (ai dele!), mas ele próprio, o sr. Saramago, e quem emite todos os juízos estéticos e morais acerca dos personagens e da trama não é tampouco um narrador (ai dele!), mas também ele próprio, o sr. Saramago, que sequer se dá ao trabalho de se esconder por detrás de um estilo que seja específico para cada livro.

O estilo é sempre o mesmo. O estilo é o próprio homem, o sr. Saramago — um estilo, diga-se, extremamente bem cuidado, inteligente e marcado por uma inegável fluidez narrativa; um estilo que já se tornou a sua marca. E esse estilo não se caracteriza, como muito já se escreveu, por qualquer subversão da linguagem, ou mais especificamente da pontuação. Não. A pontuação do sr. Saramago, salvo um pequeno detalhe acelerador de leitura, é das mais ortodoxas e certinhas. O que faz o sr. Saramago é simplesmente limitar-se ao uso de vírgulas e pontos, nunca pontos de exclamação, nunca pontos-e-vírgulas, nunca travessões, nunca reticências e raramente pontos de interrogação. O detalhe acelerador a que me referi resume-se a marcar as alternâncias de um diálogo com uma vírgula e, em seguida, com uma letra maiúscula a estabelecer o início da fala do outro interlocutor. Isto não é nada diante das estupendas maluquices gráficas que se lêem por aí.

Esse estilo saramágico foi seguramente uma das três principais razões pelas quais o sr. Saramago ganhou leitores e prêmios. A segunda razão deve-se às suas idéias, ou seja, aos argumentos centrais de seus romances, os chamados plots — engenhosíssimos argumentos que podem ser expostos, sem exceção, em no máximo três ou mesmo duas linhas. A terceira razão alimenta-se da potência filosófica e humanística das suas histórias e dos seus personagens. O sr. Saramago-ele-mesmo (ai dele!) não constitui, por si, embora ele insista em acreditar nessa possibilidade, razão alguma para que nós nos apaixonemos pela sua obra. É por isso que talvez não devamos exigir deste senhor mais nada, a não ser que continue (e se limite...) a escrever mais e mais obras-primas.

PS. Eu tencionava falar um pouquinho do último Saramago que li, o romance Todos os nomes, mas acabei espichando este preâmbulo. Para a próxima.

5 comentários:

  1. Muito bom Juvix, como sempre! Esse e os debaixo. Foi minha companhia nessa madrugada de sexta. bjs,

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  2. Juva,
    acabei de ler (e rir muito) o seu texto sobre o Sr Saramago. Foi bom pra desmitificar um pouco a figura (sr Saramago-ele -mesmo) dita tão coerente nos meios acadêmicos de onde venho. Vamos torcer pra que ele continue escrevendo ficção. A sra Lispector quando perguntada sobre a função do escritor respondeu que seria falar o mínimo possível. Confesso que quando ouvi a resposta fiquei um pouco decepcionada, mas agora entendi. Adoro os seus textos, parece que estou a lhe ouvir falar... beijos, Viviane

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  3. Querido Juva, achei tão interessante fechar o blog de um amigo cujo texto falava, e mal, exatamente sobre Saramago. E ele não é Portugues!
    Então abro o seu cãozinho e eis que ele me late : Saramago!!!
    Bem, pessoalmente não tenho a menor paciência com teorias, academias e que tais! Nem mesmo, embora mais leve e engraçado, quando é o Juva a escrever!
    um beijo.

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  4. Viviane,

    Obrigado pelo carinho de dizer que ao me ler parece que me está a ouvir falar. Isso deve ser um dos maiores elogios que se podem fazer ao texto de uma pessoa.
    Beijos,

    Juva

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  5. Angela,

    E que é que tem paciência com teorias literárias? Talvez tenhamos com aquelas que sejam menos teóricas e mais literárias... Ou não, pelo menos teoricamente...
    Beijos,

    Juva

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