17 de outubro de 2007

"Bartleby e Companhia - Campos de Carvalho e de Bartlebys"

"Bartleby e Companhia - Campos de Carvalho e de Bartlebys"

Li finalmente o delicioso livro do Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia, e desde então não deixo de ter na cabeça o personagem do Melville, o próprio Bartleby, sujeito de mistérios esquálidos e personalidade impalpável. Bartleby não faz nada nunca; quando lhe pedem que faça algo, diz que prefere não fazer. Nunca alguém o viu lendo, ou escrevendo, ou bebendo e comendo o que quer que seja, nem indo a lugar algum, ou mesmo vindo de lugar nenhum. Bartleby é visto sempre parado, olhando por uma janela que fica atrás de um biombo, e contemplando, por essa janela, um muro qualquer de tijolos da Wall Street. Bartleby não tem parentes, não tem amigos, nunca se envolveu com outro coração, ninguém sabe a sua idade e nem outras muitas informações que não me ocorrem agora mas que podem dizer algum mínimo que seja acerca de uma pessoa, situando-a no mundo. Bartleby não se situa; é praticamente uma evanescência.

E o que faz o criativíssimo escritor espanhol Enrique Vila-Matas com um personagem que não faz nada, não tem história e não tem problemas; um personagem que, antes e depois de tudo, não evoca nada? Este é o centro nervoso do Bartleby & Companhia, pois ele parte da seguinte idéia: não é que Bartleby, graças à sua postura de testemunha quietinha e comportada do espetáculo do mundo, não evoque nada. Tire-se o “não” e chega-se ao mote do livro. Bartleby evoca nada. Bartleby evoca o Nada e transforma-se, assim, na representação ficcional de um tipo de conduta diante do fenômeno literário: a conduta daqueles que, sendo escritores ou tendo escrito algum livro ou alguns livros ou mesmo não tendo escrito nada nunca, recusam deliberadamente a escrita ou, num plano mais geral, o gesto artístico concreto. Vila-Matas, através do curioso Bartleby, desfila a insólita lista dos chamados “escritores do Não”.

A lista é comprida e povoada de seres, como não poderia deixar de ser, absurdos e surpreendentes; muitos deliciosamente mal-humorados, como é o caso deste Marcel Bénabou, que, numa notinha justificadora intitulada “Por Que Não Escrevi Nenhum Dos Meus Livros”, provavelmente a única coisa que escreveu na vida, já que Vila-Matas o situa entre os chamados ágrafos, diz: “Sobretudo não acredite, leitor, que os livros que não escrevi são puro nada. Pelo contrário (que fique claro de uma vez por todas), estão como em suspensão na literatura universal”.

Há ainda o famoso caso da “desculpa esfarrapada” do escritor Juan Rulfo, que, de tão esfarrapada, se tornou original e razão de relato. “Por que não escreve mais, Rulfo?”, perguntavam-lhe. E Rulfo dizia: “Porque morreu o meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias”. E segundo Vila-Matas existiu de fato um Celerino; um tio Celerino que bebia muito e vivia de crismar as crianças da vila, ao mesmo tempo em que ia contando ao sobrinho inúmeros causos. Morto o tio, extinta a fonte, acabadas as histórias.

Há muito tempo que releio o escritor guatemalteco Augusto Monterroso (autor de um livro fundamental em qualquer biblioteca especializada em delícias literárias; e quem não tem deveria agora mesmo parar de ler esta coluna e sair às compras...). O livro chama-se A ovelha negra e outras fábulas, com tradução do Millôr Fernandes e ilustrações do Jaguar (ed. Record). O Monterroso, dizia, escreveu uma fabulazinha intitulada “Por que a raposa é mais sábia” (cuja descrição voltei a encontrar, feliz, justamente no Vila-Matas), e nela conta a história de uma raposa que um dia decidiu ser escritor e escreveu um livro que foi um sucesso tanto de crítica quando de público. Passado um tempo escreveu um segundo livro, melhor ainda que o primeiro. E enfim sossegou o facho, já satisfeita por ter escrito dois livros excelentes. Até que o povo e a crítica começaram a velha ladainha: “O que há de errado com a raposa, que escreveu dois livros e depois parou?”. “Mas eu já publiquei dois livros...”, passou a dizer a raposa, a torto e a direito e com ar de enfado. “E muito bons”, dizia a crítica. “Por isso mesmo você tem de publicar outro.” E a raposa pensava: “Na verdade o que eles querem é que eu escreva um livro ruim; mas, como eu sou a raposa, não vou fazê-lo”. E não fez.

Logo depois de terminar de ler o Bartleby & Companhia percebi que eu seria capaz de me atrever a apontar uma grande ausência na lista proposta pelo Vila-Matas (que afinal não menciona nenhum escritor do Brasil, embora mencione de Portugal). Na verdade duas ausências notáveis: Raduan Nassar, que escreveu dois livros e mais um de contos, parou de escrever, seguindo o exemplo da raposa, e foi cuidar de suas galinhas (a raposa também, à sua maneira...); e, o que me interessa mais, o escritor Campos de Carvalho, que veio ao mundo em 1916, escreveu quatro ótimos livros de 1956 a 1964, ficou sem escrever uma única linha durante 34 anos e morreu em 1998, praticamente desconhecido. Graças a um lento trabalho levado adiante há algum tempo pela editora José Olympio e por três incansáveis e talentosos bulgarófilos chamados Mário Prata, Nelson de Oliveira e Carlos Felipe Moisés, o nosso Campos de Carvalho foi reeditado, virou moda, objeto de estudo e peça de teatro. Os títulos A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro (peça pensada e montada pelo Aderbal Freire Filho) já fazem parte, para o leitor médio (ou para o leitor um pouco mais curioso que o leitor médio), do vasto universo dos títulos vagamente familiares. “É claro que a lua vem da Ásia!”, disse-me um dia um estudante de letras, nos pilotis da PUC do Rio, fascinado, comovido e para sempre convertido em fiel leitor de Campos de Carvalho. “De onde mais poderia vir a lua? Hã?”, perguntou-me ainda, levantando, brilhantes e úmidos, os olhos do livro. Concordei rápido, despedi-me rápido e saí dali voando. Campos de Carvalho fascina especialmente os loucos, as crianças e os poetas.

E por que Campos de Carvalho não escreveu mais? Porque não quis ou porque não teve de onde tirar mais um livro? “Eu abandonei por completo a literatura, por razões que não quero contar, porque me faz lembrar de tudo. Não quero mais lembranças”, disse ele numa entrevista para o Marcelo Resende (Folha de S. Paulo, 29 out. 1996). É verdade que o Bartleby do Melville, apropriado pelo Vila-Matas, mais pertence ao altivo exército dos que “preferem não escrever” do que ao encabulado grupo dos que “não conseguem sair do Capítulo 1 ou mesmo do título”. Mas é verdade, também, que essas fronteiras se destinam menos à esfera privada do que à pública, na qual se pode apregoar, sim, e com charme bartlebyano, a própria renúncia (voluntarista) à literatura. 

Não é bem o caso do Campos de Carvalho, que ainda tentou algumas missões depois dO púcaro búlgaro, seu último livro. Tentou títulos como Maquinação da máquina, Especulação sem espelho, ou Maquinação sem máquina, Especulação sem espelho, Mosaico com Moisés, ou Mosaico sem Moisés, e estes, também estéreis: Concerto no ovo e/ou De novo no ovo, e ainda Maravilha no País das Alices e, por fim, O vaso noturno. Disse numa entrevista a Edney Silvestre, para a revista O Cruzeiro, em 1969: “... o título do livro que estou escrevendo no momento (...), assim como a 4ª Sinfonia de Charles Ivens exige a presença de três maestros para ser bem interpretada, assim também penso que esse meu novo livro, para ser bem compreendido, deva ser lido simultaneamente por três leitores”.

Não foi lido por nenhum.

2 comentários:

  1. faz um bom tempo q ouço falar nesse escritor espanhol. o campos de carvalho já conheço bem. vou procurar o henrique.
    abçs.

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  2. Oi Juva, Enorme satisfaçao encontrar seu blog e nele ler mais uma pitada de Campos de Carvalho. Escrevo porque estou numa empreitada que já foi sua um dia: dissertação de Mestrado, sou mestrando da UFF e seu livro tem sido um bom amigo. Nao direi que te levo para cama, mas que tens me ajudado em minhas pesquisas isso é a mais pura verdade.

    Espero que estejam todos bem nesta nova fase de suas vidas ai em Portugal. Meu nome é Raimundo Lopes e como todo pesquisador chato gostaria de te pedir algumas informações sobre as entrevistas do Campos de Carvalho, não sendo abuso, se puderes me enviar seu email para um futuro contato, desde já lhe agradeço. Meu email é rlopes_letras@hotmail.com.

    Lendo sobre as coincidencias do capítulo I de seu livro, vai um fato que ocorreu comigo: dei um exemplar de Vaca de Nariz Sutil (objeto de meu trabalho) para um advogado amigo, um senhor de seus 80 anos, com quem sempre conversei sobre tudo (queria interlocutores para meu projeto). Alguns dias depois ele me ligou e disse: "esse gajo, o Juva, é filho de um amigo nosso, os pais dele inclusive virao a nossa casa no final de semana". Este senhor é o Dr. José Assis de Almeida, também português, amigo de seus pais, foi ele quem me falou sobre sua mudança para Portugal e sobre seus livros para crianças, fico feliz por saber que seus projetos literários estão a pleno vapor.

    Abraços e agradeço a atenção.

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